14 dezembro 2010

As nuvens que dançam


Seria capaz de passar horas a olhar para as nuvens reflectidas nos vidros velhos do edifício antigo. O vento sopra meigo, fa-las avançar lânguidas e preguiçosas, parecem dançar devagarinho. Quando passam num vidro partido desaparecem. Mas voltam a aparecer no seguinte como num caleidoscópio. Quando acabam de passar no último vidro, já vem a seguinte no início da sequência. Quantos milhões de nuvens já teram sido reflectidas naqueles vidros? Quantas já dançaram neles? Pelo sim, pelo não, meti um bocadinho de vidro partido no bolso, um caquinho pequeno, mas carregadinho de nuvens dançantes.

09 novembro 2010

O Galvanoplasta


Manipulas o éter vital e brincas com as teias de prata.
Saltitas de mundo em mundo e engoles oxigénio puro às golfadas, exultante.
Despedaças a realidade com as garras fortes e afiadas, e sorves elegantemente por uma palhinha pequenos goles da poeira cósmica de que somos feitos.

Tens consciência que o tempo urge, mas não te preocupas com isso.
Moldas a existência a teu bel-prazer, sem nunca te esqueceres do sangue.
Conheces as ilusões da humanidade, mas perdoas-lhe e não te impacientas.
Anseias por tempestades: vampirizas-lhes a energia, a fúria e a beleza.

Abres as asas aos ventos ciclónicos.
Dormes em pele sobre carvões acesos.
Róis a casca da planta-veneno.
Adentras os desertos mais inóspitos sem uma pinga de água no bolso.

Ris-te da morte e da vida.
E adormeces, ao fim do dia, no cimo da tua montanha.

Sem manta, sem mochila, sem fogueira.

09 agosto 2010

O Psiconauta


O Psiconauta é o caminheiro da mente.
É o senhor absoluto do seu caminho.
A solidão é a sua candeia e o infinito o seu estandarte.
Solar ou ctónico, explora a infinitude dos mundos mentais sem restrições ou medos.
Mergulha no vulcão em erupção e testemunha mil crepúsculos nos antípodas do Universo. Dissolve-se no astral, uno com o Cosmos.
Almoça com os Lamas e bebe o chá da tarde com os Sadhus.
Não sabe o que são fronteiras nem obstáculos.
Não distingue a morte da vida.
Fala a linguagem do Eterno.
Flui, apenas.

03 agosto 2010

Portais


Estão em toda a parte.
Arquitectónicos, místicos, emocionais, mentais, espirituais, cibernéticos, intelectuais,
físicos, simbólicos, visuais, temporais, mágicos, dimensionais, sexuais, quotidianos,
universais, ilusórios ou reais, ciclópicos ou ínfimos, visíveis ou mais discretos,
humanos ou divinos, banais ou epifânicos.
Basta um olhar mais observador.
Qualquer passeio pelas imediações,
da simples porta de casa às imponentes obras maçónicas,
de uma breve passagem de um livro a uma revelação de consciência,
de uma tempestade cerebral a uma mudança de atitude,
de uma ruína humana a um passo da humanidade,
de um clic na internet a um estado de conhecimento semi akáshico,
de uma violação brutal a um parto sublime,
de um devaneio místico a uma manifestação fenomenológica,
de uma viagem espacial a uma viagem astral,
do ritual mais sombrio ao mais iluminado,
da conclusão escolástica mais sóbria ao êxtase consciente induzido por toxicidade.
Há-os por todo o lado.
Quão insonsa seria a vida humana sem eles.

23 junho 2010

A Mosca Temporal


A mosca respirou fundo. Havia muito anos que lia e pensava filosofia. Tinha tido a sorte de ser agraciada como Mosca Temporal por Chronos e, portanto, não estava sujeita à curta vida das suas congéneres. Debruçava-se ultimamente sobre o Dualismo, sistema filosófico Descartiano, que consiste na doutrina que admite, como explicação primeira do mundo e da vida, a existência de dois princípios, de duas substâncias ou duas realidades irredutíveis entre si, inconciliáveis, incapazes de síntese final ou de recíproca subordinação. Pensava de si para consigo, saboreando os conceitos. E da superfície do espelho onde sempre pousava quando queria pensar, transportou-se até Mileto para experienciar a visualização dos discursos do mestre Anaximandro sobre cosmologia e evolucionismo. E deixou-se ficar a flutuar em estado de graça do Conhecimento, com a mente a apreender, assimilar e concluir. De repente ouviu a voz titânica de Chronos. Num nano segundo voltou à superfície fria do seu espelho favorito. Era hora! E Chronos não suportava atrasos.

21 junho 2010

Midsummer


Solstício de verão, eixos planetários que se inclinam, achegamentos e interacções das orbes magníficas, vénias cósmicas cujos arcos são causa de transmutação, metamorfose,
epigénese e evolução.

É o dia com mais Luz do ano inteiro. Focar coragem, energia e saúde. Noite de celebrar, esquecer a Sombra, invocar a Luz que brilhará intensa nos próximos meses.

Dança-se à volta da fogueira toda a noite. Come-se e bebe-se em honra do Sol e da Terra, magnos deuses todos poderosos.
Aproveitar para recarregar baterias, sejam elas físicas, místicas ou intelectuais.

Sacodem-se as trevas das costas, dança-se, ri-se e celebra-se a união cósmica cíclica que ainda nos permite viver como filhos (pródigos) destes dois seres celestes.
*

24 março 2010

Foto Grafia ou Desenhar com Luz


Do grego, fós (φως) grafé (γραφη), que significa desenhar com luz.

Desde a invenção da câmara obscura ao advento da tecnologia digital, a viagem através da imagem capturada tem sido incomensuravelmente longa e labiríntica. Técnicas, formatos, ramos, disciplinas, movimentos e história em geral. Mundos a desbravar. Mas tudo isso faz parte do domínio do estudo e aperfeiçoamento. As minhas questões são outras.

Afigurasse-me interessante, por exemplo, pensar que capturar imagens é roubar pedaços de realidade presente. Apoderamo-nos deles e passam a ser nossos, congelados, eternos e imperecíveis, perfeitos. Permanecem imortais, perpétuos, imunes à passagem do tempo. Mesmo uma velha fotografia com 40 anos, amarelecida, comida do peixe-prata, mortiça e ténue, aprisiona um determinado momento que ficou para sempre encarcerado entre o papel de suporte e os químicos da revelação. Algures no momento real, há uma fracção de segundo que é furtada, como se se retirasse uma pequena peça de um puzzle temporal e existencial. No caso de uma natureza morta pouca diferença fará. Mas os índios têm uma ideia diferente acerca das imagens capturadas de pessoas. Acreditam que lhes roubam um pedaço da Alma.

Saquear pedaços de existência, de vidas, de emoções, de actos e acontecimentos é como ter um cronómetro que pára o tempo. De certa forma, é brincar a ser-se Deus. E a brincadeira pode ir bem mais longe, quando se constroem mundos apenas e só com o propósito de os capturar. Nano-segundos de fragmentos do presente, que o são para sempre, presente. Todos conhecemos o poder que determinadas imagens têm de nos transportar de imediato ao momento x ou y. Materializa-se ali, presente amaldiçoadamente eterno.

Tudo somado desde o início da história fotográfica, são eóns de fracções existênciais gatunadas à má fila por todos quantos “desenham com luz”. Colecções colossais de pedaços de emoções e acções, porções de almas, peças de vidas, espólios gigantescos de instantes usurpados ao fio do Tempo.

Sim, desenhar com luz é um conceito muito belo.
Mas tem as suas questões.

12 janeiro 2010

O Insecto Seco



O insecto seco gostava de voar pela casa. Esperava que a calma da manhã trouxesse o silêncio para sair da caixinha de fósforos onde estava guardado e voar livre. O seu sítio favorito era a prateleira dos livros de filosofia e o pontinho azul da televisão que ficava aceso quando desligavam o aparelho. Gostava de se pôr em frente dele para ficar azul e fingir que era um escaravelho egípcio. Sabia que não podia deixar marcas das suas escapadelas clandestinas e por isso apagava as minúsculas pegadas que deixava no pó dos móveis com as asas. Sabia também que se fosse à cozinha podia sempre encontrar migalhas de pão duro no fundo do cesto, as suas favoritas. E ali ficava feliz, a rata-las, enquanto pensava que afortunado era em ter morrido naquela casa e em se ter tornado num insecto de estimação, ainda que involuntariamente, ainda que morto. Protegido do apodrecimento, poderia viver ali para sempre. E rodopiava feliz, a cantarolar. Visitava a sua amada, uma borboleta de plástico rosa com mil tons nacarados nas asas, a mais bela e perfeita de todas as criaturas. Depois ía até às janelas e olhava demoradamente o mundo lá fora. Via os temíveis e vorazes pássaros a perseguirem os da sua condição. Via os humanos que iam e vinham nas suas vidas atarefadas, dentro das suas naves ou a pé. Observava outros bichos num frenesim de actividades interessantes. Por vezes tinha a sorte de haver pela casa um livro aberto esquecido. Aí deleitava-se a ler as coisas mais extraordinárias, caminhando pelas linhas com as suas patinhas delicadas. Sabia que tinha de ter cuidado com as horas e já conhecia o relógio e a sua utilidade. Ao fim da tarde, dava um último volteio rodopiante, um último voo rasante aos candeeiros, um último beijo apaixonado à sua borboleta, e um último olhar à casa. A sua casa! Sorria, ditoso, e voltava a meter-se na sua caixinha, tendo o cuidado de se colocar na mesma posição em que tinha sido deixado da última vez, não fosse o ser feminino que o guardara precisar dele essa noite para o fotografar e achar estranho estar noutra posição. Sabia que era exagero, mas nunca se sabe. E era tão feliz ali como nunca fora. Não queria arriscar. Era um preço justo a pagar pela isofismável perfeição de vida que tinha.